QUARTO MANDAMENTO
“Lembra-te do dia de sábado para o santificar”
Êxodo 20.8-11; Deuteronômio 5.12-15
D – Gn 1.1–2.3 – Um dia de descanso após seis dias de trabalho;
S – Êx 16.1-36 – O Deus da provisão que garante o sustento;
T – Êx 23.1-33 – Honestidade, descanso, celebração e fidelidade;
Q – Êx 31.1-18 – Dedique os dons ao tabernáculo, mas não se esqueça do descanso;
Q – Dt 5.1-21 – A ratificação dos Dez Mandamentos; S – Mt 12.1-14 – O Senhor do sábado;
S – Hb 4.1-16 – O descanso garantido por Jesus, o sumo sacerdote compassivo
OS TERMOS DO MANDAMENTO
Vejamos o que consta no quarto mandamento. O sábado deve ser “lembrado” (v. 8). O vocábulo usado por Moisés na Bíblia Hebraica tem um sentido muito mais extenso do que meramente recordar esporadicamente. Trata-se de estabelecer um “memorial” ou “manter na lembrança” — algo que não podemos esquecer.
O sábado deve ser “santificado” (v. 8). A ideia da Escritura é separar, consagrar ou tratar como sagrado. A base para essa santificação é o registro da Criação; Deus trabalhou seis dias e descansou no sétimo (v. 11). Entendamos que essa e outras passagens (por exemplo, Gn 2.3; Êx 31.17) utilizam antropomorfismo, ou seja, atribuem a Deus características humanas. Nós não podemos entender essas descrições literalmente. Pelo contrário, como ser divino Todo-Poderoso, Deus não fica inativo, muito menos se cansa (Sl 121.3-4; Is 40.28). O foco do texto é destacar Deus como modelo. Se o próprio Criador guardou o sétimo dia, nós também temos de guardá-lo.
O modo de praticar o mandamento se encontra em Êxodo 20.9-10. Interromper o trabalho. Simples assim.
QUARTO MANDAMENTO NO ANTIGO TESTAMENTO
O sábado é mencionado diversas vezes no restante do Antigo Testamento (AT). Em um texto que precede a promulgação da lei (Êx 16), Deus é destacado como fonte e garantidor de sustento. Ele forneceu o maná (um alimento para Israel, durante a peregrinação pelo deserto; cf. Jo 6.31). O maná caía do céu junto com o orvalho e era recolhido. A quantidade a ser recolhida correspondia ao consumo diário, porque, ao ser guardado para o dia seguinte, o maná deteriorava (Êx16.4,15-21). Na sexta-feira, porém, ele devia ser recolhido e preparado em quantidade dobrada, a fim de observar-se o “repouso, o santo sábado do SENHOR” (Êx 16.5,22-24). Aquele sinal foi dado para provar a obediência pactual dos crentes (Êx 16.4).
Em Êxodo 23.12 (cf. Lv 23.3), a ordem para guardar o sábado é ratificada com uma nota importante: tanto pessoas quanto animais precisam de um dia para “tomar alento”, ou seja, revigorar-se para uma nova semana de trabalho.
Êxodo 31.12-18 apresenta o sábado como “sinal” da relação do povo com o Deus que santifica (v. 13). A solenidade desse repouso é grande; quem desconsiderá-lo deve morrer (v. 14-15). O sábado deve ser “guardado” como “aliança perpétua” em cada geração (v. 16). Em outro lugar, o preceito é repetido; a quebra do sábado deve ser punida com morte e sequer os fogões podem funcionar no dia de descanso (Êx 35.2-3). Um exemplo de aplicação da pena de morte pela violação do sábado é registrado em Números 15.32-36.
Em Levítico 16.31, o Dia da Expiação é um “sábado de descanso solene”. Os israelitas tinham de observá-lo em atitude de arrependimento e como “estatuto perpétuo”. Também era no sábado que, como “aliança perpétua”, doze pães eram colocados pelo sacerdote sobre a mesa de ouro do tabernáculo (Lv 24.5-9). Deuteronômio 5.11-15 repete as palavras de Êxodo 20, com um acréscimo: o descanso relaciona-se ao alívio da escravidão sob os egípcios (Dt 5.15).
O princípio de intercalar seis períodos de produção com um de descanso é repetido em Êxodo 23 e Levítico 25.1-7. Após seis anos de cultivo, a terra deveria descansar durante um ano. Mais do que uma definição de caráter ritual, tal medida beneficiava os “pobres” e “animais do campo”, que tinham acesso direto ao “sobejo” dos pomares e plantações.
Toda essa revelação divina acerca do sábado é recebida com ação de graças pelos israelitas piedosos. Os líderes do culto no segundo templo, na época de Neemias, louvaram a Deus, que lhes havia feito conhecer o “santo sábado” (Ne 9.4-6,14). Em Neemias 10.31, o povo fiel a Deus assumiu o compromisso de nada comprar dos comerciantes pagãos neste dia. Em um ato corajoso, em sua segunda fase de liderança em Jerusalém, Neemias restabeleceu a guarda da folga sabática (Ne 13.15-22).
Quatro profetas do AT mencionam o sábado. Destacando a salvação dos gentios, Isaías declara que quem crer em Deus e o obedecer – isso incluindo a guarda do sábado – será “bem-aventurado” (Is 56.1- 8). Mais a frente, revela-se o desprazer divino com o jejum praticado pela “casa de Jacó” (Is 58.1-14). O povo só se preocupava com seus “próprios interesses” e se envolvia em “rixas” (Is 58.3-4). O próximo era oprimido e desconsiderado, e prevaleciam ameaça e a injúria (Is 58.6- 10). Ademais, a guarda do sábado tornara- se mera formalidade. O repouso deixara de ser um “deleite” e, mesmo no santo dia, o povo da aliança seguia os seus próprios caminhos, fazia sua própria vontade e falava “palavras vãs” (Is 58.13). Era preciso retornar à verdadeira devoção, a fim de desfrutar da comunhão e das bênçãos pactuais do Criador (Is 58.11-12,14). Por fim, o servo de Deus anteviu o dia da consumação, quando, “de um sábado a outro”, as nações se apresentariam para cultuar ao Senhor de toda terra (Is 66.23).
Jeremias declarou que por causa da inobservância do sábado, as portas e palácios de Jerusalém seriam queimados (Jr 17.27). A destruição de Jerusalém pelos babilônios precedeu o esquecimento do sábado (Lm 2.6). Ezequiel, por sua vez, mencionou o sábado no contexto de suas visões do novo templo (Ez 46.1,4,12). Ali o povo de Deus ofereceria uma adoração tanto modificada quanto ideal. Amós alude ao pecado dos israelitas que tinham pressa de que passasse o sábado, a fim de aumentarem seus ganhos ilícitos (Am 8.4-7).
Em suma, o AT ratifica a ordenança da Criação, que é legalmente sancionada no Decálogo. O sábado é parte imprescindível como tempo para busca diferenciada de Deus (mandato espiritual), como oportunidade de descanso e comunhão do ser humano com seu próximo (mandato social) e como sinal de que Deus é fonte e garantia de todo desenvolvimento e sustento humano (mandato cultural). A inserção da guarda do sábado à lista de mandamentos de Êxodo 20 simplesmente corrobora as ordenanças “criacionais” do Redentor de Israel e a expectativa dos profetas é de um tempo em que, sob o domínio messiânico, todos os povos adorem ao Senhor, “de um sábado a outro”.
QUARTO MANDAMENTO NO NOVO TESTAMENTO
Se na era do AT Deus falou de diversas maneiras “aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias, nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez o universo” (Hb 1.1-2). Realiza-se em Jesus a expectativa de Ezequiel 46, de um novo templo com ordenanças modificadas.
Em todos os seus ditos e feitos, o Senhor Jesus jamais levantou a bandeira de revogação do quarto mandamento. Cristo tanto cumpriu quanto atualizou as promessas do AT (Mt 5.17-18; 2Co 1.20). Ele trouxe a novidade do reino, que não foi crida nem abraçada por alguns religiosos de seu tempo (Mc 2.18- 22). De modo enigmático, utilizando uma designação da profecia de Daniel 7.13-14, o Redentor declarou: “Porque o Filho do Homem é senhor do sábado” (Mt 12.8 – grifo meu). Aos judeus, que talvez se apegassem a uma interpretação literal de Êxodo 31.17, ele ensinou que Deus trabalha todos os dias (Jo 5.16-18 – grifo meu). Além disso, Jesus acentuou que a guarda do Dia do Senhor – bem como todos os regulamentos religiosos de Israel “ deve ir muito além do apego a regras legalistas; o sábado é para abençoar o próximo; é instituição divina para benefício do homem (Mt 12.1-14; Mc 2.27). Por fim, o sábado é para se aproximar de Deus (nosso Senhor ia à sinagoga aos sábados para prestar culto, além de ler e ensinar as Sagradas Escrituras – Mc 1.21; Lc 4.16).
Duas coisas são ainda dignas de nota. Primeiro, o convite de Jesus ao desfrute do verdadeiro descanso – um repouso disponível, não em um dia específico, mas na comunhão com ele mesmo (Mt 11.28- 30). Em segundo lugar, percebemos a menção da “consumação” do trabalho de Jesus em uma sexta-feira, o descanso de seu corpo na sepultura no sábado e sua ressurreição no domingo (Jo 19.30-31,38- 42; 20.1,19). Esses dados bíblicos preparam o terreno para a mudança completada no restante do NT.
Em Atos, é no sábado que os discípulos testemunham de Cristo nas sinagogas ou buscam lugar propício para a oração (At 13.42,44; 16.13). Pontua-se uma transição. Os irmãos se reúnem para “partir o pão” no domingo (At 20.7). A novidade trazida pela ressurreição do Senhor toma lugar não apenas na mente e coração dos crentes, mas também no calendário cristão.
As ordenanças do AT são “sombra” do que haveria em Cristo (Cl 2.17). Uma vez que os cristãos desfrutam diretamente de Cristo, eles não podem mais ser julgados “por causa de comida ou bebida, ou dia de festa, ou lua nova, ou sábados” (Cl 2.16). A entrada no descanso da Terra Prometida, na época do Êxodo, exigiu fé (Hb 3.1-19). Do mesmo modo, necessitamos confiar em Deus hoje, para entrarmos em seu descanso (Hb 4.1-13). Isso é possível somente por causa de Jesus Cristo, “o Filho de Deus” que nos ajuda como “sumo sacerdote que penetrou os céus” (Hb 4.14-16).
O NT define Jesus como a pessoa e o significado apontados pelo sábado. Nesses termos, o sábado na Criação sinalizava o descanso disponível em Cristo, Senhor da nova criação. Esse descanso é anunciado no evangelho, assegurado na morte do Redentor na cruz, antecipado em sua ressurreição, no primeiro dia da semana, e aguardado como realização plena na glorificação dos crentes e na consumação (Ap 14.13; 21.1-4; 22.1-5).
A CONSIDERAÇÃO DO QUARTO MANDAMENTO
Como é que os cristãos – especialmente aqueles que assumem a Bíblia como única regra de fé e prática e são apegados à herança da Reforma Protestante do século 16 – entendem o quarto mandamento? A resposta pode ser resumida em duas afirmações: nenhum legalismo e nenhum antinomianismo.
O legalismo é a noção equivocada de que obtemos a aprovação de Deus por meio da prática de boas obras. O legalista entende que ganha o favor divino obedecendo à lei ou regras da religião. Quanto mais “bonzinhos” ou “encaixados” às exigências religiosas, mais dignos nós somos das bênçãos do Senhor. Por outro lado, qualquer imperfeição de nossa parte nos coloca sob castigo do alto. A relação com Deus deixa de basear-se na graça divina e se torna troca (Rm 4.4-5). Ao invés de libertar e trazer descanso, o legalismo aprisiona a consciência a preceitos humanos (Cl 2.20-22).
A consciência do cristão não pode estar amarrada a doutrinas legalistas. Por isso é rejeitado, por exemplo, o Adventismo do Sétimo Dia. Essa não é uma religião protestante nem evangélica, mas uma seita que anuncia a necessidade de guardar o sábado para salvação. Por isso eles são denominados sabatistas.
O antinomianismo, por sua vez, é outra ideia contrária às Escrituras. Neste caso, apregoa-se que, diante da graça, a lei perde toda utilidade. Desse modo, o cristão salvo pela graça não precisa se preocupar em obedecer ao quarto mandamento. A esse respeito a Confissão de Fé de Westminster declara:
Embora os verdadeiros crentes não estejam debaixo da lei como um pacto de obras, para serem por ela justificados ou condenados, contudo ela lhes serve de grande proveito, como aos demais; informando-lhes, como regra de vida, a vontade de Deus e o dever que eles têm, ela os dirige e os obriga a andar segundo a retidão; descobre-lhes também as pecaminosas poluções de sua natureza, do seu coração e da sua vida, de maneira que eles, examinando-se por meio dela, alcançam mais profunda convicção de pecado, maior humilhação por causa dele e maior aversão a ele; ao mesmo tempo, lhes dá mais clara visão da necessidade que têm de Cristo e da perfeita obediência a ele.
Dito de outro modo, os herdeiros da Reforma guardam o quarto mandamento de maneira genuinamente cristã. O sétimo dia do AT é substituído pelo primeiro dia (o domingo da ressurreição). A zelosa observância do descanso permanece sob a égide do evangelho.